PARÁBOLAS: Coincidências e diferenças entre Budismo e Cristianismo



            O Budismo apresenta vários pontos em comum com o Cristianismo, sendo ambas religiões que pregam a tolerância e a compaixão. Além disso, foram reveladas por indivíduos de características excepcionais que falavam, entre outras coisas, por intermédio de metáforas e parábolas. O Buda foi um notável pedagogo e era provido, segundo os testemunhos dos sutras, de uma voz pura e de longo alcance. Jesus Cristo, por outro lado, teve certa vez que pregar de cima de um barco para uma multidão que se acercava da borda do lago. Sua voz deveria igualmente ser cativante e clara.
            De forma notável, algumas parábolas de Cristo guardam grande semelhança com outras ensinadas pelo Buda, quinhentos anos antes, como pretendo mostrar a partir destas breves notas comparativas. 
            Na Coletânea dos escritos de Nichiren Daishonin, volume I, página 559, podemos ler a transcrição da parábola do filho doente ensinada pelo Buda:
            “Quando chegou o momento de sua extinção, o Grande Iluminado Mundialmente Reverenciado lamentou: “Agora estou prestes a entrar no nirvana. Minha única preocupação é com o rei Ajatashatru”. Então, o bodisatva Kashyapa perguntou-lhe: “Como a compaixão do Buda é imparcial, seu lamento de morte deveria ser pela benevolência para com todos os seres vivos. Por que ele se preocupa somente com o rei Ajatashatru?”O Buda respondeu: “Suponha que um casal tenha sete filhos e um deles caia doente. Apesar de os pais amarem todos os filhos igualmente, eles se preocupam com o que está doente”. [...] “Se eu puder salvar o rei Ajatashatru, poderei salvar, da mesma forma, todas pessoas maléficas”.
                        (Coletânea dos escritos de Nichiren Daishonin, vol. I, p. 559)
            O rei Ajatashatru foi um dos reis de Mágada, no norte da Índia. Segundo as narrativas, ele tornou-se rei após assassinar o próprio pai, o rei Bimbira, que era um poderoso defensor do Buda Shakyamuni. Posteriormente ele se tornou seguidor de Devadhatta, primo e desafeto do Buda e passou a perseguir o Buda e a seus discípulos. No entanto, assim como Devadhatta, Ajatashatru converteu-se ao Budismo após a morte do Buda e tornou-se igualmente um defensor do Budismo, tendo inscrito seu nome na história do Budismo de forma decisiva por ter sido o patrono do primeiro concílio budista, que se reuniu após a morte do Buda com o objetivo de compilar seus ensinamentos.
            Dentro da concepção do budismo Mahayana, toda forma de vida contém os dez estados ou dez mundos potenciais, do mais baixo (estado de inferno) ao mais elevado (estado de Buda). Isso é consistente com a atitude do Buda, sua compaixão é tão imensa que incorpora seus inimigos, do mesmo modo que os amigos e discípulos. E o resultado é que esses inimigos tornaram-se posteriormente seus discípulos e defensores.
            Mesmo as pessoas maléficas podem ser salvas através dos ensinamentos Budistas, o que não significa que o Buda estenda a mão, por exemplo, e lhes conceda essa graça. O Buda é aquele que revela, abre e induz a entrar no caminho. No entanto, esse deve ser trilhado por cada um, uma vez que o objetivo do budismo é o autoaperfeiçoamento. Por ter feito tanto mal à Lei, Ajatashatru converteu-se em seu defensor, o que significa que ele passou a doar a própria vida pelos ensinos do Buda. Sua conversão equivale a uma iluminação, ou seja, à revelação do seu próprio estado de Buda.            
            Vejamos agora a conhecida parábola da ovelha desgarrada, conforme narrada em Lucas, 15: 1-7:
            “Aproximavam-se de Jesus os publicanos e os pecadores para ouvi-lo. Os fariseus e os escribas murmuravam: “Este homem recebe e come com pessoas de má vida”.
            Então lhes propôs a seguinte parábola: “Quem de vós que, tendo cem ovelhas e perdendo uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la? E depois de encontra-la põe-na nos ombros, cheio de júbilo, e  voltando para casa, reúne os amigos e vizinhos dizendo-lhes: Regozijai-vos comigo, achei a minha ovelha que se havia perdido. Digo-vos que assim haverá maior júbilo no céu por um só pecador que fizer penitência do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.”        
            A parábola de Cristo expressa a universal compaixão de Deus. Ela se dirige a todos os indivíduos, sem distinção, mesmo àqueles que se desviaram do caminho. Essa compaixão é concedida como uma graça que emana do criador.

            Para uma apreciação mais detalhada, vejamos agora a parábola budista do homem rico e seu filho pobre e, em seguida, sua equivalente nos textos cristãos:
            “Há muitos anos, um menino fugiu da casa de seu pai, que era um homem muito rico. Durante quase cinquenta anos, ele andou de um lado para outro, em situação de extrema pobreza, realizando trabalhos serviçais. Um dia, em meio a suas andanças, ele foi parar na mansão de seu pai. 
            O homem rico ficou muito feliz ao ver o filho novamente, pois seu desejo era dar a ele toda a riqueza como herança. Porém, assustado com o esplendor da mansão, o filho logo fugiu. O pai então enviou mensageiros para buscá-lo, e o filho, temendo a prisão, desmaiou de medo.
            Sabendo disso, o homem rico pediu aos mensageiros que o soltassem, e enviou dois de seus servos vestidos com roupas sujas para oferecerem a ele o trabalho de recolher excrementos. O filho aceitou o emprego.
            Por vinte anos o filho se dedicou a limpar excrementos e assim gradativamente ele se desenvolveu. O pai então o promoveu a administrador de sua propriedade e, passo a passo, ele começou a aprender todas as suas funções.
            Quando o pai sentiu que a morte estava próxima, declarou ao rei, aos ministros e a seus parentes que seu empregado era, na realidade, seu filho verdadeiro. E transferiu a ele todas as suas posses”.
                                               (SEIKYOPOST, 19 de janeiro de 2016)

            Fundamentalmente, esta parábola contrasta o estado de ignorância e ilusão, que leva ao sofrimento, e o estado de iluminação, fonte da sabedoria e da felicidade. O filho abandonou a casa paterna em um ato intempestivo, pois era muito jovem e inconsequente. Ao se afastar do que lhe oferecia segurança e felicidade, tornou-se presa de suas próprias fraquezas, passando a viver em miséria e sofrimento. Como tal, ignorava completamente a riqueza que era sua e estava a seu alcance. O pai, neste caso, é evidentemente o Buda, enquanto que o filho representa as pessoas comuns que vivem em estado de completo abandono moral e espiritual.
            Algo importantíssimo do ponto de vista do budismo é a trajetória do filho no caminho da redenção e a forma como seu pai o fez percorrer esse caminho e se autoaperfeiçoar. Ela diz muito sobre a pedagogia do Buda e seus meios hábeis, que são formas como ele adaptava seus ensinamentos profundos e difíceis de serem compreendidos em um primeiro momento ao nível de compreensão do público. Como o filho tinha-se convertido em um pobre diabo, de baixíssima autoestima, habituado à pobreza e ao trabalho duro, o único meio possível de acercar-se dele foi oferecendo-lhe o pior emprego possível. A compaixão do ponto de vista budista, portanto, não é emotiva e irracional, ela corresponde a uma atitude de sabedoria e se materializa em um gesto que leva em consideração a realidade daquele que se pretende ajudar.
            Vejamos agora a parábola do filho pródigo, provavelmente a parábola mais conhecida de Jesus Cristo, proferida na mesma ocasião que a parábola da ovelha perdida citada acima:
            “Disse também: “Um homem tinha dois filhos. O mais moço disse a seu pai: Meu pai, dá-me a parte da herança que me toca. O pai então repartiu entre eles os haveres. Poucos dias depois, ajuntando tudo o que lhe pertencia, partiu o filho mais moço para um país muito distante, e lá dissipou a sua fortuna, vivendo dissolutamente. Depois de ter esbanjado tudo, sobreveio àquela região uma grande fome: e ele começou a passar penúria. Foi-se pôr ao serviço de um dos habitantes daquela região, que o mandou para os seus campos guardar os porcos. Desejava ele fartar-se das vagens que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava.
            Entrou então em si e refletiu: Quantos empregados há na casa de meu pai, que têm pão em abundância... e eu, aqui, estou a morrer de fome! Levantar-me-ei e irei a meu pai, e dir-lhe-ei: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti, já não sou digo de ser chamado seu filho; trata-me como a um dos seus empregados. Levantou-se, pois, e foi ter com seu pai. Estava ainda longe quando, quando seu pai o viu, e, movido de compaixão, correu-lhe ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou. O filho lhe disse então: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Mas o pai falou aos servos: Trazei-me depressa a melhor veste e vesti-lhe, e ponde-lhe um anel no dedo e calçado nos pés. Trazei também um novilho e matai-o; comamos e façamos uma festa.
            O filho mais velho estava no campo. Ao voltar e aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças. Chamou um servo e perguntou-lhe o que havia. Ele lhe explicou: Voltou teu irmão. E teu pai mandou matar um novilho gordo, porque o reencontrou são e salvo.  Encolerizou-se ele e não queria entrar; mas seu pai saiu e insistiu com ele. Ele, então, respondeu ao pai: Há tantos anos que te sirvo, sem jamais transgredir ordem alguma tua, e nunca me deste um cabrito para celebrar com os meus amigos. E agora, que voltou este teu filho, que gastou teus bens com as meretrizes, logo lhe mandaste matar um novilho gordo! Explicou-lhe o pai: Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu; convinha porem fazermos festa, pois este teu irmão estava morto reviveu, tinha-se perdido e foi achado.”                                                                           
                                                           (Lucas, 15: 11 – 32)
                        O pai, no caso da parábola de Jesus Cristo, é evidentemente Deus. Ele acolhe o filho que retorna com grande júbilo. O filho, conforme o texto explicita, representa as pessoas comuns que “pecam” ou se corrompem diante da lei de Deus.
            A compaixão demonstrada nos dois textos, o budista e o cristão, é a mesma, sem exceção de mau ou bom, bonito ou feio. Assim como a compaixão do Buda, a compaixão de Deus é universal e imparcial. No entanto, a forma como ela se realiza e o sentido final da mensagem possui grandes diferenças, que dizem respeito às diferenças de concepção dessas duas religiões.
            Falei acima dos meios hábeis ou das estratégias utilizadas pelo Buda. Nada disso é encontrado no texto cristão. Do filho que retorna nada é exigido além de seu arrependimento e confissão. Ele é acolhido de imediato na mansão do pai, recebe roupas caras e símbolos que representam sua condição social, como o anel. Mais uma vez, a salvação é oferecida como uma graça externa, sem que o sujeito a conquiste. Ou seja, ele não trilha com as próprias pernas o caminho do sacrifício e do autoaperfeiçoamento.
            Aliás, no que tange à relação sujeito-objeto as diferenças entre Budismo e Cristianismo se aprofundam. Como mencionado acima, no Budismo o indivíduo deve ser o sujeito da própria história e dar demonstrações objetivas de mudança e evolução. A recompensa surge como resultado de um empenho pessoal, portanto do merecimento, como foi o caso do filho que executou durante quarenta anos tarefas árduas e até mesmo indignas. O pai o preparou criteriosamente para ocupar funções mais elevadas e só lhe ofereceu a recompensa quando este estava devidamente preparado para tal. Agindo como o Buda, o pai mostrou, abriu, induziu a entrar, mais foi o filho que se empenhou e conquistou com os próprios esforços. Esta é a universal lei budista da causa e efeito. A relação se equilibra totalmente e sujeito e objeto se convertem em entidades inerentes e complementares, sem distinção entre elas. O filho se mostrou à altura do pai e herdou dignamente sua fortuna e posição.
            Do ponto de vista cristão, nada disso ocorre. Deus é evidentemente o sujeito, o que detém a determinação, pode premiar ou punir. Seus desígnios constituem um mistério para o homem. O filho pródigo foi acolhido de imediato na casa do pai e alçado sem restrições à posição do mesmo, apesar dos argumentos do filho mais velho de que seu irmão mais novo tinha gastado tudo “com meretrizes”. Convenhamos que alguém que recém saiu de uma vida de irresponsabilidade e pouco senso moral dificilmente se redime com o simples arrependimento. O efeito (a redenção) não é sustentado por uma causa outra que a vontade do pai, apesar de esta contrariar a razão e o bom senso. Sujeito e objeto são entidades separadas e completamente diferentes.
                        Afora isso, a semelhança entre os dois pares de parábolas citados é notável. A compaixão universal que elas transmitem é a mesma, apesar de os fundamentos seres diferentes, pelo fato de o Budismo ser uma filosofia fundamentada na realidade da existência e voltada para o indivíduo, enquanto que o Cristianismo encontra sua razão de ser na figura do Deus criador, ou seja, uma entidade mística exterior ao homem.
            Como grande parte dos estudiosos sustenta que Jesus viveu na Galileia e na Judéia e que não pregou ou estudou em qualquer outro local, é difícil imaginar como ele teria tomado contato com as parábolas do Buda e, portanto, com seus ensinamentos. Por outro lado, nada se sabe da vida de Jesus entre os treze e os trinta anos de idade, quando começou sua pregação, de modo que especulações podem ser feitas. Ele teria de algum modo tido contato com os ensinamentos do Buda ou trata-se de simples coincidências?
            É sabido que o imperador Asoka, que governou a Índia entre 273 e 232 a. C., enviou emissários budistas a lugares tão distantes quanto o Oriente Médio e a Grécia Antiga. Esta é uma pista objetiva, mas apenas estudos especializados poderão estabelecer laços mais concretos entre as duas religiões e suas figuras fundadoras.

©
Abrão Brito Lacerda
14 01 19

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