O CAMINHO DO MEIO
Uma das características
mais notáveis do Budismo é sua visão integrada dos fenômenos. Ao não isolar um
aspecto em detrimento de outros, algo comum em outras religiões e filosofias,
que buscam tratar as coisas de forma “pura” e abstrata, separando o
"bem" do "mal", o Budismo estabelece parâmetros profundos e
elevados. Ele nos ensina que a realidade é essencialmente “impura” e que
não devemos idealizá-la com o objetivo de oferecer uma explicação simplista e
redutiva das coisas.
Essa
característica é muito bem explicitada na doutrina dos Dez Mundos ou Dez
Estados de Vida do Budismo Mahayana, a saber, que em qualquer tempo e lugar
nossa atitude é determinada pela interrelação dos elementos constituintes de
nossa natureza, que vão do mais inferior (Estado de Inferno ou Escuridão
Fundamental) ao mais elevado (Estado de Buda ou Iluminação), com inúmeras
gradações possíveis entre eles.
Ela
encontra-se igualmente explicitada na doutrina da inseparabilidade entre o ser
e seu ambiente, a qual estabelece que não podemos ser separados do meio em que
estamos inseridos, uma vez que o Ser e seu Ambiente constituem uma mesma
entidade e isolá-los constitui um erro epistemológico fundamental. Lembrando
que Ambiente aqui não se refere apenas àquilo que nos rodeia fisicamente,
coisas e pessoas, ou a dimensão psicológica, sociológica ou política de nosso
mundo mental. Ele possui três mil elementos, vai desde o ar que respiramos e as
leis de gravitação universal até o substrato metafísico ou espiritual que dá
sentido à existência. Sua síntese é a “verdadeira natureza de todos os
fenômenos” ou Lei Mística.
Podemos
citar ainda a doutrina da transformação do veneno em remédio, algo próximo do
ditado popular de que “não há mal que não venha para o bem”. A ocorrência de um
de um erro ou mesmo uma tragédia nos adverte para suas causas e nos coloca
diante de uma mudança necessária. Se atuamos e transformamos nossa realidade a
partir desse ponto de vista, poderemos, de forma plenamente consciente,
manifestar gratidão para com o veneno que nos ensinou a fórmula da cura.
Esses
princípios são frequentemente retomados por Nichiren Daishonin em seus textos,
os quais constituem uma leitura recomendável para todos aqueles interessados no
Budismo e na espiritualidade, independentemente de serem praticantes ou não.
Daishonin faz cair o véu de mistério que envolve os temas místicos e dá a cada
indivíduo a possibilidade de construir sua vida à luz do Budismo. O esforço que
ele empreendeu a partir da sua iluminação para retirar a humanidade da
ignorância é digno da mais alta gratidão.
Um
desses textos é o tratado intitulado “A Entidade da Lei Mística”, que consta do
Volume I da coletânea de suas obras publicadas pela Editora Brasil Seikyo. Na
página 437 desse volume, lemos:
“A
iluminação não possui entidade separada; depende completamente da ignorância. E
a ignorância não tem entidade separada; depende completamente da iluminação.”
Dizer
que a sabedoria (iluminação) está intrinsecamente ligada à ignorância é um
choque para nossa cultura de meias-verdades, uma advertência aos seguidores de
cegos nesse mundo de fake News e ao mesmo tempo um alívio para o homem comum,
que descobre subitamente que os mitos e os deuses não são em nada diferentes
dele.
Mais
adiante, no mesmo texto, Daishonin cita a frase da obra Grande Perfeição da
Sabedoria para explicitar a verdade atemporal do Caminho do Meio:
“A iluminação e a ignorância não são coisas distintas, não
são coisas separadas. Compreender isso é o que se chama de caminho do
meio."
O
fundamento da Lei Mística é o de que as características do mundo são de
natureza constante, diferentes fenômenos são determinados pelo mesmo princípio.
Não existe um princípio para o bem ou a iluminação e outro separado para o mal
e a ignorância. Tomar os fenômenos (manifestações) pela totalidade é um erro
fundamental sobre o qual os indivíduos de qualquer época precisam ser
advertidos e, muito mais, no mundo de hoje, parcial e inconcluso, dominado pela
cizânia e a intolerância.
©
Abrão
Brito Lacerda
09
04 19
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